FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E MULTIPARENTALIDADE

“A jurisprudência escolhia um ou outro. Agora, não. São os dois: o pai biológico e o afetivo” – Flávio Tartuce.

As profundas transformações ocorridas no mundo alteraram a estrutura clássica da família, rompendo o conceito tradicionalmente fundado no caráter social e religioso. A fim de amparar as necessidades da sociedade, a constituição do núcleo familiar foi ampliado e não mais se resume no formato tradicionalmente reconhecido por um homem e uma mulher com intuito de procriação.

O ordenamento jurídico, por ser liame entre o amor e a lei, preconiza que o núcleo familiar atual é pautado no vínculo de afetividade, originando o reconhecimento legal de novas composições familiares, as quais podem ter um pai, uma mãe, dois pais, duas mães ou serem multiparentais.

O estado de filiação, portanto, não mais está atrelado unicamente ao vínculo biológico e o Judiciário, já há algum tempo, confere em suas decisões a inclusão, o tratamento igualitário e o reconhecimento de vínculos afetivos perante a sociedade.

Na contemporaneidade, as relações de parentesco não podem ter seus direitos e deveres regulados unicamente a partir do já esvaziado vínculo genético, motivo pelo qual, mesmo que timidamente, o ordenamento jurídico brasileiro legitima as demais formas de filiação, atribuindo valor jurídico ao vínculo de afeto.

Surge, então, a filiação socioafetiva, atestada a partir dos laços de afeto nutridos muito além do convívio harmonioso entre os envolvidos. Para sua caracterização, é necessário o animus em ter o parentesco com determinada pessoa que não o tem de forma consanguínea. Nos dizeres de FACHIN[1]revela-se no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços da paternidade, numa relação entre suposto pai e filho, o qual lhe empresta o nome de família e assim o trata perante a sociedade. Pai é aquele quem cuida, educa, alimenta, acompanha o desenvolvimento e a formação do filho, seja ele biológico, adotivo ou filho do coração”.

A celeuma se manifesta quando as nuances citadas coexistem entre pessoas com vínculos socioafetivo e biológico, sendo que até pouco tempo, optava-se pela exclusão de uma paternidade, por exemplo, prevalecendo, quase sempre, a biológica.

Por não se mostrar correta a exclusão de uma em detrimento de outra, acentuou-se a possibilidade jurídica de coexistência das filiações, como de fato se afigura no caso concreto, surgindo, então, a acolhida tese da multiparentalidade.

A denominada multiparentalidade, portanto, é a possibilidade de se ter mais de um tipo de parentesco mediante o reconhecimento da existência de mais de um pai e/ou de uma mãe, simultaneamente, em seu registro de nascimento, seja em razão dos critérios biológico, da presunção ou do socioafetivo.

A filiação multiparental se apresenta como solução justa aos anseios sociais, pois garante aos indivíduos tratamento isonômico em prestígio ao princípio da dignidade humana. Exemplo disso, foi dado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, há nove anos, em decisão inédita, que incluiu na certidão de nascimento de um jovem o nome de sua madrasta, sem excluir o nome de sua mãe, que faleceu três dias após o parto[2].

Dessa forma, vê-se que a jurisprudência, ao reconhecer a multiparentalidade, preencheu lacunas da legislação seca e aplicou o direito em prol dos anseios sociais da atualidade, fundamentando as decisões na afetividade e na proteção do melhor interesse do tutelado, princípios basilares na seara das famílias.

Com o reconhecimento jurídico do conceito, desde 2017, o Conselho Nacional de Justiça regulamentou o procedimento administrativo que permite o reconhecimento voluntário de paternidade ou maternidade socioafetiva  pela via cartorária, estabelecendo-se, assim, também, a possibilidade de registro multiparental sem necessidade de trâmite judicial, desde que limitado a apenas um pai ou mãe que tenha a posse de estado de filho, e, ainda, com intervenção do Ministério Público.

Para os demais casos que demandem a inclusão de mais um ascendente, a aplicação da multiparentalidade, no entanto, somente será possível por meio de ação específica e trilhará o caminho processual de produção e análise de provas consistentes, capazes de atribuir segurança e correta aplicação do conceito, dentre as quais, podemos citar os estudos sociais, perícias psicológicas, dentre outras.

O reconhecimento registral de múltipla vinculação de parentesco implica também na regulamentação de seus efeitos jurídicos, tais como o dever de prestar alimentos, regulamentação de guarda e regime de convivência harmônica entre os interessados, direito sucessório e também efeitos previdenciários, até porque a filiação socioafetiva gera os mesmos efeitos da biológica.

Conclui-se, portanto, que as alterações legislativas e as decisões judiciais celebram a evolução dos costumes e acolhem os novos formatos familiares, conferindo ao afeto o mesmo valor de princípio jurídico, legitimando as diversas formas de vínculo e de filiação em prol da valorização da condição humana moderna. 

Referências bibliográficas:

FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 37.

https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/121822502/minhas-duas-maes . Acesso em 21.02.2021

http://genjuridico.com.br/2019/08/29/reconhecimento-parentalidade-socioafetiva/ . Acesso em 21.02.2021.


[1] FACHIN, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 37.

[2] https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/121822502/minhas-duas-maes . Acesso em 21.02.2021

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