A TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR
INTRODUÇÃO
Benjamin Franklin, um intelectual de sua época (1706-1790) é autor de uma frase marcante, que aliás ultrapassa fronteiras, “Remember that time is money”, cuja tradução é “Lembre-se o tempo é dinheiro”.
Neste ponto, cabe salientar que o tempo é um bem jurídico finito. Ao longo de nossas vidas não podemos recuperá-lo, tendo, portanto, um valor imensurável.
Vale ressaltar que ninguém consegue realizar ao mesmo tempo duas ou mais atividades de natureza incompatível ou fisicamente excludentes (princípio da impenetrabilidade da matéria).
O tempo é suporte implícito para a vida, que nele se desenvolve e dura por certo período. Assim, é possível compreender que o tempo é vida, pois a vida se constitui nas próprias atividades existenciais.
Como base na valorização do tempo o advogado Marcos Dessaune desenvolveu a tese denominada Desvio Produtivo do Consumidor, lançada em 2011, publicado pela Editora Revista dos Tribunais.
A referida teoria tem como escopo indenizar o consumidor pelo tempo perdido na tentativa de solucionar um problema que não deu causa.
Pese embora referida tese já tenha mais de 10 anos de existência, contando-se do lançamento do livro anteriormente mencionado, sua aplicação ainda é divergente, havendo decisões do Superior Tribunal de Justiça, ora entendendo pela caracterização do dano, ora pela sua inexistência.
A RESPONSABILIDADE CIVIL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor, com advento em 11 de setembro de 1990, antes mesmo da edição do Código Civil, passou a consagrar o instituto da responsabilidade civil objetiva, apoiando-se na teoria do risco, em que o dever de indenização surge de qualquer lesão sofrida pelo consumidor, independente de culpa do fornecedor, bastando, apenas, o nexo de causalidade entre o consumidor, o produto e/ou serviço e o dano.
Conforme o artigo 2º do CDC, consumidor é quem adquire o produto ou serviço como destinatário final, seja ele pessoa física ou uma empresa.
Além disso, o parágrafo único do referido artigo equipara a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
No artigo 3º do mesmo diploma legal está expressa a definição de quem é considerado fornecedor de produtos ou serviços. A definição é bem ampla, atingindo todos os envolvidos na cadeia de produção e comercialização. Segundo o mencionado artigo, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, que produz, monta, cria, constrói, transforma, importa, exporta, distribui ou comercializa produtos ou serviços.
A responsabilidade objetiva prevista no Código de Defesa do Consumidor advém da ideia de desequilíbrio na relação entre as partes, vez que o consumidor na maioria das vezes mostra-se hipossuficiente em face do fornecedor.
A hipossuficiência prevista no Código de Defesa do Consumidor pode ser de natureza econômica, técnica e jurídica.
Entende-se por vulnerabilidade técnica a ausência de conhecimento específico, advindo do conhecimento oriundo de técnica, profissão ou estudos sobre determinados produtos.
A hipossuficiência econômica relaciona-se a vulnerabilidade do consumidor diante do poderio econômico do fornecedor.
E ainda hipossuficiência jurídica, a falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo.
Dentro do contexto da responsabilidade civil objetiva, o Código de Defesa do Consumidor, prevê quatro espécies, quais sejam, a responsabilidade pelo vício do produto, prevista nos artigos 18 e 19 do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade pelo fato do produto, prevista nos artigos 12 e 13 também do Código de Defesa do Consumidor, e a responsabilidade pelo vício do serviço, prevista no artigo 20 também da Lei Consumerista, e por fim, a responsabilidade pelo fato do serviço, prevista no artigo 14, também do mesmo Estatuto em comento.
Necessário, ainda, diferenciar o vício do fato, indicados nas espécies retromencionadas.
Temos o vício quando o produto fica limitado ao produto ou aos serviços, ou seja, não ocasiona problemas acessórios ou deles decorrentes, enquanto que o fato os problemas se transpõem, ocasionando outros danos, que podem ser de natureza material, moral ou estético.
Pois bem, a única exceção constante na codificação referente a responsabilidade objetiva é a relacionada aos profissionais liberais que prestam serviço, já que somente respondem mediante prova de culpa (responsabilidade subjetiva).
A TEORIA DO DESVIO PRODUTIVO DO CONSUMIDOR
Conforme destacado alhures, a teoria do desvio produtivo do consumidor é uma tese de autoria do advogado Marcos Dessaune, que em síntese, se caracteriza na situação na qual o consumidor precisa desperdiçar seu tempo e atividades para resolver problemas de consumo que sequer deveriam existir.
Segundo Dessaune, em síntese, o desvio produtivo caracteriza-se quando o consumidor, diante de uma situação de mau atendimento, precisa desperdiçar o seu tempo e desviar as suas competências — de uma atividade necessária ou por ele preferida — para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade indesejado, de natureza irrecuperável.
Referida tese conforme já destacado na introdução, fora objeto da obra publicada em 2011, de título “Desvio produtivo do consumidor – o prejuízo do tempo desperdiçado” do retromencionado jurista.
Não são raras, porém, as vezes que perdemos longas horas em telefonemas intermináveis e na maioria das vezes infrutíferos no call center de determinado serviço de atendimento ao consumidor, objetivando resolver problemas advindos de falha na prestação de serviço, cobranças indevidas, entre outras, para, no fim, muitas vezes o problema subsistir.
Pese embora com a referida teoria busque originalmente a valorização do tempo desperdiçado do consumidor, os tribunais ao reconhecem sua aplicação no sentido de que há o reconhecimento do dano moral face aos descasos das prestadoras de serviços.
Necessário ainda destacar que não são todos os fatos que segundo a maioria dos tribunais caracterizar o descaso passível de indenização.
Para a caracterização da do desvio produtivo do consumidor, é necessário comprovar que o consumidor perdeu horas do seu tempo para resolver o problema, além disso que resultou em estresse, tristeza, ira, etc.
Aliás, importante destacar que a comprovação do tempo desperdiçado também vem sendo exigida e pode se dar por meio de conversas, gravações – de áudio ou vídeo –, por testemunhas ou outros meios que são capazes de demonstrar o transtorno pelo qual o consumidor passou.
Para compreender melhor a tese do desvio produtivo do consumidor, faz-se necessário analisar alguns julgados relacionados ao tema em questão, em especial da posição do STJ sobre sua aplicação.
POSICIONAMENTO DO STJ
O Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a teoria do desvio produtivo do consumidor e garantido indenização por danos morais a clientes pelo tempo desperdiçado para resolver problemas, e ante o descaso dos fornecedores em resolve-los quando instados pelos consumidores.
De maio a outubro de 2018, a corte teria aplicado a teoria em pelo menos cinco casos.
Em decisão datada de 27 de setembro de 2018, o ministro Moura Ribeiro, da 3ª Turma do STJ, manteve decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que aplicou a teoria no caso de um cancelamento indevido de cartão de crédito. Ao tentar fazer uma compra, a mulher descobriu que seu cartão havia sido bloqueado. Sem conseguir desbloqueá-lo, recorreu ao Judiciário (REsp 1.763.052/RJ).
Anteriormente no ano de 2017, o Colendo Superior Tribunal de Justiça já tinha proferido decisão a respeito da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, quando o julgamento monocrático do AREsp 1.260.458/SP, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze.
Em 2019, pese embora também tenham sido prolatadas decisões aplicando a mencionada teoria, também foram proferidas decisões afastando sua aplicação, senão vejamos.
O Ministro Luís Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.406.245, entendeu que não é adequado ao sentido jurídico a associação do dano moral a qualquer prejuízo economicamente incalculável ou com um caráter de mera punição, e que são os interesses existenciais que são tutelados pelo instituto da responsabilidade civil por dano moral, o que não abrange – ainda que lamentáveis -, aborrecimentos ou frustações a envolver relação contratual.
Recentemente pese embora entendimento em sentido contrário, conforme o destacado anteriormente, aplicação da teoria vem se consolidando cada vez mais pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo as decisões favoráveis à sua maioria.
É notório que a aplicação da tese aqui analisada tenha crescido não só no STJ, mas também nos Tribunais Estaduais, evidenciando tratar-se de um aparato de defesa contra práticas abusivas, reconhecendo o dano temporal e possibilitando a indenização pelo tempo desperdiçado.
CONCLUSÃO
Diante de todo o explanado fica evidente que a Teoria do Desvio Produtivo, criada pelo advogado Marcos Dessaune trata-se de uma importante ferramenta para amparar o consumidor frente ao descaso dos fornecedores.
Sendo a regra a responsabilidade civil objetiva nas relações de consumo, o fornecedor assume diante de sua atividade a obrigação de prestar um serviço de qualidade, responsabilizando-se por eventual vicio ou falha no serviço oferecido.
Inexistindo no Código de Defesa do Consumidor qualquer disciplina quanto a indenização pelo descaso perpetrado na relação de consumo, no sentido de reparar o prejuízo oriundo da perda de tempo do consumidor em resolver problemas do qual muitas vezes não deu causa.
A Teoria do Desvio produtivo do consumidor surgiu como uma importante ferramenta para frenar abusos cometidos contra consumidores, visto vez que determina que o tempo também é precioso e tem valor na vida humana, e, por esta razão, carece de tutela.
Pese embora se trate de uma teoria com mais de 10 (dez) anos de existência sua aplicação apesar de crescente, ainda é divergente junto a jurisprudência pátria.
No Superior Tribunal de Justiça apesar de ser de ser maciça sua aplicação, ainda existem decisões em sentido contrário.
Outrossim, pese embora os entendimentos divergentes, não há dúvidas que crescente aplicação da Teoria, ora destacada, mostra-se um avanço no âmbito consumerista, apta a coibir abusos inegavelmente rotineiros na vida dos consumidores, afastando-se em caso específicos o mero aborrecimento.
Por Ana Carolina Fonseca Nogueira
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