O ATIVISMO JUDICIAL E A SEGURANÇA JURÍDICA
- CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Tripartição dos Poderes constitui um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.
O art. 2º da Constituição Federal prevê que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Nos dizeres de Ricardo Cunha Chimenti, Fernando Capez, Márcio F. Elias Rosa e Marisa F. Santos:
“A tripartição, portanto, é técnica pela qual o poder é contido pelo próprio poder, um sistema de freios e contrapesos (também denominado checks and balances, verificações e equilíbrios ou método das compensações), uma garantia do povo contra o arbítrio e o despotismo”[1].
Não obstante a independência e autonomia entre os referidos Poderes, a interferência do Poder Judiciário em suas atuações torna-se necessária nas situações em que existir abuso ou inobservância dos limites legais, como bem delineado pela teoria dos freios e contrapesos (checks and balances sistem)[2].
Não se pode, ainda, desprezar a necessária intervenção do Poder Judiciário nas situações excepcionais, notadamente nos casos de emergência e calamidades públicas.
Na atividade judicante, o Poder Judiciário converte as normas abstratas em concretas, criando “regras” para os casos que lhes são apresentados.
Referida conversão do Direito, de abstrato para concreto, ocorre no instrumento público denominado processo. As normas processuais, portanto, viabilizam a formação do Direito para o caso apresentado, razão pela qual se diz que o juiz é o interprete autêntico da norma, pois da sua atividade interpretativa surgem novas normas, para os casos sub judice.
O Poder Legislativo produz normas, mas não cria o Direito.
A “criação” do Direito compete ao Poder Judiciário, que por intermédio de uma atividade técnica e interpretativa, que envolve a conjugação de regras e valores, soluciona a lide apresentada mediante provimentos jurisdicionais que devem ser cumpridos e respeitados.
Para a solução da lide, imprescindível a conversão das normas abstratas em concretas, sendo o Direito produto da conjunção de normas e regras (escritas e não escritas) que regem a vida em sociedade.
Sabrina Dourado França Andrade destaca:
“Hoje, já é ascente o entendimento de que a função jurisdicional é uma atividade genuinamente criadora, pois, a concepção da sentença ou da decisão como sinônimo de silogismo caiu em descrédito, em virtude da defesa da idéia de que a obra do órgão jurisdicional traz sempre, em maior ou em menor medida, um aspecto novo, o qual, não estava contido na norma geral”[3].
Referida atividade, para que seja justa e adequada, exige do julgador a exata compreensão dos fatos e provas que lhes são apresentados, bem como da perfeita sintonia com os padrões e valores que regem a vida em sociedade, no momento em que proferida a decisão.
O Direito é dinâmico e como tal deve estar em conformidade com a evolução da sociedade.
A complexidade e heterogeneidade das relações jurídicas apresentadas ao Estado, exigem do julgador perspicácia e habilidade, conforme bem destacado por Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:
“Quando se insiste na necessidade de o juiz atribuir sentido ao caso levado à sua análise, deseja-se, antes de tudo, dizer que ele não pode se afastar da realidade em que vive. Se a percepção das novas situações, derivadas do avanço cultural e tecnológico da sociedade, e fundamental para a atribuição de sentido aos casos que não estão na cartilha do judiciário, a apreensão dos novos fatos sociais, que atingem a família, a empresa, o trabalho etc., é igualmente imprescindível para a atribuição de um sentido contemporâneo aos velhos modelos capazes de ser estratificados em casos.
Embora essas duas atitudes também importem para desvendar a necessidade de uma nova elaboração legislativa, o seu peso maior recai sobre o juiz, uma vez que é evidente que o legislador não pode andar na mesma velocidade da evolução social – o que, aliás, já constitui ditado vulgarizado. Por isso, o surgimento de novos fatos sociais dá ao juiz legitimidade para construir novos casos e para reconstruir o significado dos casos já existentes ou simplesmente para atribuir sentido aos casos concretos”[4].
A atuação do Judiciário deve ser pautada pela busca da decisão de mérito e consequente pacificação social, merecendo destaque o princípio da primazia do julgamento do mérito, expressamente previsto nos arts. 4º e 6º, ambos do Código de Processo Civil.
Não pode o Judiciário furtar-se ao julgamento do pedido que lhe fora apresentado, e na medida do possível, os obstáculos processuais devem ser removidos, superados, para que o mérito seja efetivamente analisado. Trata-se de clara opção do legislador.
A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê em seu artigo quarto que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, ou seja, o ordenamento jurídico não apresenta lacunas. O que se admite é a lacuna “legis”, jamais haverá lacuna “juris”. Para colmatar o referido vazio legislativo, necessário será o ativismo judicial, ou seja, a atividade legislativa criativa e adaptada às particularidades do caso concreto, emanada do Poder Judiciário.
Nesse sentido, cita Maria Helena Diniz:
“Hans Kelsen afasta a idéia da existência de ‘lacunas’ no sistema, pois todo e qualquer comportamento pode ser considerado como regulado – num sentido positivo ou negativo – pela ordem jurídica. Justamente por entender que, ‘quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever a um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta’, regulando-a negativamente, rejeita Kelsen a formulação, feita por alguns autores, de que, ante a impossibilidade das normas regulamentarem todas as ações humanas possíveis, haverá sempre casos em que a aplicação do direito estará excluída, por não haver norma que os prescreva, devendo os juízes cria-las como se fossem legisladores. Daí o caráter da completude ou da plenitude do sistema normativo, na concepção de Kelsen, pois as normas que o compõem contêm, em si, a possibilidade de solucionar todos os conflitos levados à apreciação dos magistrados ou órgãos competentes”[5].
Hodiernamente observamos que a sociedade clama, e a legislação tem atendido, pela mudança do perfil do magistrado na aplicação do Direito. Idealiza-se um juiz não omisso, que passa a se preocupar com a aplicação efetiva do Direito.
O processo constitui instrumento para a aplicação do direito substancial, motivo pelo qual não pode aquele ser sobreposto a este.
Referida atividade deve ocorrer de forma limitada, na estrita observância da independência e harmonia que deve existir entre os Poderes da República, pois não pode o Judiciário usurpar as competências constitucionais previstas aos Poderes Executivo e Legislativo.
Por outro giro, o Poder Judiciário deve ser o supridor da ineficiência legislativa e executor de políticas públicas executivas, viabilizando, com isso, o acesso à ordem jurídica justa, nos termos do art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Ao se analisar a sociedade contemporânea, pode-se concluir que o paradigma da separação constitucional da competência está sendo redimensionado, pois o juiz deixa de ser exegeta e passa a fazer parte do sistema normativo, podendo tal afirmação ser facilmente comprovada pelas súmulas vinculantes, que importante papel tem desempenhado à celeridade processual e segurança jurídica.
A ascensão do Poder Judiciário, notadamente em relação aos Tribunais de sobreposição, exige maior reflexão sobre o tema “ativismo judicial”, para que possamos, dessa forma, ter condições de visualizar os seus pontos positivos, negativos e nas situações que se fizerem necessárias, reprimir os excessos, para que não exista o sempre temido e malfadado superpoder.
O ativismo judicial remonta sua origem no neoconstitucionalismo.
O constitucionalismo trata-se de movimento social, político e jurídico, que teve como objetivo principal limitar o Poder do Estado, por meio de uma carta de direitos denominada Constituição.
Pode-se então afirmar que duas características marcantes estão presentes no constitucionalismo: controle pelo povo e controle pelo instrumento constitucional.
O neoconstitucionalismo, por sua vez, desponta no pós segunda guerra mundial. Antes do referido marco o Estado destacava-se pelo não intervencionismo; após o Estado passou a ser prestacionista. A partir de então, passamos para o pós positivismo, ou seja, direito positivado, porém à luz dos princípios.
Compreender o constitucionalismo é imprescindível para perceber a importância da “jurisdição constitucional”, bem trabalhada por André Ramos Tavares, merecendo destaque:
“(…) a expressão ‘jurisdição constitucional’ é empregada no intuito de designar ‘a sindicabilidade desenvolvida judicialmente tendo por parâmetro a Constituição e por hipótese de cabimento o comportamento em geral e, principalmente do Poder Público, contrário àquela norma paramétrica’”[6].
A jurisdição constitucional lastreia-se em princípios, com bem destaca José Joaquim Gomes Canotilho:
“No constitucionalismo recente parece defender-se, em geral, a conexão entre constituição e jurisdição constitucional (…). A título de noção tendencial e aproximativa, pode definir-se justiça constitucional como o complexo de actividades jurídicas desenvolvidas por um ou vários órgãos jurisdicionais, destinadas à fiscalização da observância e cumprimento de normas e princípios constitucionais vigentes. (…) A justiça constitucional é hoje também um aparo para a defesa de direitos fundamentais, possibilitando-se aos cidadãos, em certos termos e dentro de certos limites, o direito de recurso aos tribunais constitucionais, a fim de defenderem, de forma autónoma, os direitos fundamentais violados ou ameaçados (a justiça constitucional no sentido de ‘jurisdição da liberdade’)”[7].
Indiscutivelmente, os princípios são normas da mais alta generalidade e abstração, todavia, provimentos jurisdicionais calcados em princípios, imbuídos de critérios distorcidos e/ou deturpados, representam sérios riscos à estabilidade e segurança jurídicas.
Como bem elucidam Humberto Theodoro Júnior, Dierle Nunes, Alexandre Melo Franco Bahia e Flávio Quinaud Pedron:
“A abertura para os princípios também tem significado o que Lenio Streck chama de ‘panprincipiologismo’, isto é, decisões com base em princípios sem qualquer lastro normativo, é dizer, na falta de regra aplicável ao caso (ou de um conflito sério entre princípios), infere-se um novo princípio a partir de critérios os mais variados: critérios lógicos, pragmáticos, moralistas, entre outras razões.
A crítica a esse tipo de compreensão das normas está na perda/ausência de parâmetros de controle: uma vez que um órgão judicial deixa de se submeter à constituição e passa a sacar ‘princípios’ a partir de outras fontes, torna-se legibus solutos (o dono da lei por estar acima dela, inclusive da Constituição)”[8].
O emprego de princípios vagos nas decisões judiciais, como os da dignidade da pessoa humana e razoabilidade, são bons exemplos para ilustrar que em muitas situações são invocados para justificarem decisões politicamente corretas, todavia, desprovidas de lastro normativo.
2. REFLEXOS DO ATIVISMO JUDICIAL
O aumento da longevidade, evolução da ciência, biotecnologia, globalização, o desenvolvimento da sociedade como um todo, enfim, os “novos direitos” passaram a exigir tratamento estatal diferenciado.
A mobilidade do ordenamento jurídico deve acompanhar as transformações culturais, sociais, econômicas e jurídicas. Observa-se significativa mudança da antiga técnica legislativa casuística, na qual o legislador, a partir dos casos concretos, criava as normas e listava os possíveis casos a serem solucionados, para textos normativos abertos, com maior carga principiológica.
Pode-se afirmar que o Direito passou a ter uma projeção do seu sentido para o futuro, deixando de lado a sua consistência pré-constituída.
O Direito deve ser dinâmico e caminhar “pari passu” com a sociedade. O engessamento do sistema em textos fechados e casuísticos impede que o Estado cumpra com a sua missão constitucional, qual seja, restabelecer o direito violado.
Tendo por escopo delimitar o campo de abordagem, pode-se mencionar como exemplo o sistema processual civil brasileiro, que com a Lei 13.105, de 16 de março de 2015, conhecida como a lei instituidora do Código de Processo Civil em vigor, vale-se de cláusulas gerais e textos normativos abertos, que conferem maior mobilidade ao sistema.
Referida técnica legislativa permite manter o texto normativo vivo e atualizado, prolongando a viabilidade dos institutos jurídicos, permitindo o ajuste às necessidades sociais, evitando, consoante acima destacado, o engessamento do sistema.
Para ilustrar o afirmado, importante destacar dispositivos legais que contemplam textos normativos abertos, verdadeiras cláusulas gerais.
O artigo 5º do Código de Processo Civil prevê que “aquele de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.
Prevê o art. 79 do referido Codex que “responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente”.
O princípio da boa-fé processual trata-se de texto normativo aberto, repleto de carga valorativa e que confere ao julgador a possibilidade de impor sanções processuais em conformidade com o seu livre convencimento motivado.
Diante das cláusulas abertas há necessidade, todavia, de estabelecer limites e controles para a atuação, pois normas gerais e abertas, aliadas à falibilidade humana, constituem fatores negativos inerentes a toda e qualquer prestação jurisdicional.
Merece destaque, ainda, a cláusula aberta que confere ao magistrado a possibilidade de adotar medidas de acordo com as particularidades do caso concreto, a exemplo do que ocorre nos arts. 400, parágrafo único; 403, parágrafo único e art. 301 do Código de Processo Civil[9].
Ao tratar do ônus da prova o legislador também conferiu a possibilidade de o julgador adequá-la em conformidade com as particularidades do caso concreto, merecendo destaque o disposto no art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil, in verbis:
“(…)
§ 1º. Nos casos previstos em lei ou diante de particularidades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, casos em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.
Com relação ao ônus da prova, tem-se duas concepções probatórias, a estática (prevista no art. 373, “caput” e seus incisos I e II, do Código de Processo Civil) e concepção dinâmica, prevista nos parágrafos segundo e terceiro do referido artigo.
Pode-se, ainda, destacar, o polêmico art. 139 do Código de Processo Civil, notadamente o disposto em seu inciso IV, abaixo transcrito:
“Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(…)
IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
A partir do momento em que a lei apresenta uma redação aberta, ao intérprete resta conferida a possibilidade de excessos e equívocos.
O advento da regra acima colacionada permitiu que muitos juízes, sob a justificativa de zelar pela efetividade, utilidade e celeridade processuais, passassem, v.g., a determinar a retenção de passaportes de executados, proibição do direito de dirigir, como medidas cominatórias para forçar o cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer, bem como outras medidas totalmente dissociadas do objeto da lide.
Para corroborar o acima elucidado, oportunas as declarações de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:
“Acontece que, com o passar do tempo, tornou-se necessário munir os litigantes e o juiz de uma maior latitude de poder, seja para permitir que os jurisdicionados pudessem utilizar o processo de acordo com as novas situações de direito material e com as realidades concretas, seja para dar ao juiz a efetiva possibilidade de tutelá-las.
(…)
Acontece que as normas processuais abertas não apenas conferem maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, mas também outorgam ao juiz o dever de demonstrar a idoneidade do seu uso, em vista da obviedade de que todo poder deve ser exercido de maneira legítima. Se antes o controle do poder jurisdicional era feito a partir do princípio da tipicidade, ou da definição dos instrumentos que podiam ser utilizados, hoje esse controle é mais complexo e sofisticado. A legitimidade do uso dos instrumentos processuais depende da espécie de tutela do direito e das particularidades do caso, da consideração do direito de defesa e, obviamente, da racionalidade da argumentação expressa na fundamentação da decisão ou da sentença”[10].
Por óbvio que em sede recurso, a maior parte dos desvios e equívocos judiciários restam sanados, todavia, o efeito colateral da norma (aumento da quantidade de recursos), colide com um dos principais objetivos da novel legislação, qual seja, celeridade processual mediante a redução de processos em trâmite, notadamente nos graus recursais.
3. O ATIVISMO JUDICIAL E OS DESAFIOS APRESENTADOS
A sociedade moderna tem apresentado novas realidades que representam verdadeiros desafios aos operadores do Direito.
O gradativo aumento da complexidade da vida humana tem se mostrado como grande desafio aos operadores do Direito, como bem ponderado por Tercio Sampaio Ferraz Júnior:
“(…) Sobretudo nos últimos 50 anos, o advento da sociedade tecnológica aumentou consideravelmente a complexidade da vida humana. A civilização tecnológica não apenas cria mais possibilidades de ação, como se alimenta de si própria, aumentando e acelerando a possibilidade da própria criação tecnológica. Esse movimento reflexo da tecnologia – a manipulação tecnológica da própria tecnologia – altera o sentido dos controles sociais e políticos, repercutindo nos controles jurídicos. Na complexa sociedade tecnológica de nossos dias, as atividades de controle mudam de vetor, deixando de voltar-se primordialmente para o passado para ocupar-se basicamente do futuro. A questão não está mais em controlar o desempenho comportamental tal como foi realizado, mas como ele se realizará. A civilização tecnológica, nesses termos, joga sua capacidade criativa em fórmulas de governo, cujos máximos valores são a eficiência dos resultados e a alta probabilidade de sua consecução. No campo jurídico, o tribunal, tradicionalmente uma instância de julgamento e responsabilização do homem por seus atos, pelo que ele fez, passa a ser chamado para uma avaliação prospectiva e um ‘julgamento’ do que ele é e poderá fazer.[11]”.
Tem sido constante em rodas de debates jurídicos problemas relacionados à pós verdade, desinformação, fake news, deepnews, mídias eletrônicas e efetividade na prestação jurisdicional.
A tutela jurisdicional repressiva tem se mostrado ineficaz em várias situações apresentadas, despontando a relevância e pertinência das tutelas jurisdicionais diferenciadas, notadamente as tutelas preventivas (inibitórias e remoção de ilícito).
Observa-se, portanto, que as novas realidades não permitem que a legislação até então vigente solucione de forma eficaz e justa o conflito apresentado.
Novos fenômenos exigem do Judiciário a atuação correlata, em conformidade com as referidas novidades.
Para ilustrar a importância do alegado, basta citar como exemplo o maior aplicativo de transportes do mundo, denominado “uber”. Trata-se de uma grande “empresa”, lastreada em plataforma virtual, que movimenta mundialmente milhões de dólares, a partir de um projeto, uma idéia. Trata-se de mega empresa de transportes que não possui veículos próprios para transportar os seus passageiros.
Empresa que se vale da força humana despendida por pessoas que empregam veículos próprios ou alugados, cobraram pelas “viagens” feitas, cujos pagamentos são feitos diretamente ao aplicativo, que repassa aos trabalhadores um pequeno percentual.
Ao Judiciário brasileiro foram apresentados casos interessantes relacionados ao aplicativo “uber”, notadamente discussões que envolveram a necessidade e possibilidade de tributação local, para evitar a concorrência com taxistas, que em razão dos encargos exigidos para o exercício do trabalho, deparavam-se com a impossibilidade de concorrerem com os baixos preços praticados pela referida plataforma.
Outra discussão interessante envolveu o reconhecimento ou não de vínculo empregatício entre a referida plataforma e motoristas que se dedicavam à tal modalidade de trabalho.
Tais discussões contribuem para a evolução do Direito e exigem do julgador interpretar a legislação vigente e aplica-las aos casos apresentados, colmatando os vazios legislativos existentes, caracterizando um verdadeiro ativismo judicial.
4. ATIVISMO JUDICIAL EM PERÍODOS EXCEPCIONAIS
Antes da conclusão do presente artigo nos deparamos com a grave crise mundial decorrente da pandemia relacionada ao vírus propagador da COVID-19.
No âmbito federal, a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, dispôs sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Em razão da Medida Provisória 926, de 20 de março de 2020, o art. 3º da referida Lei Federal passou a apresentar a seguinte redação:
“Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
(…)
VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:
- Entrada e saída do País; e
- Locomoção interestadual e intermunicipal”.
Na mesma linha, os Estados e Municípios legislaram mediante decretos, determinando, inclusive, fechamento de comércios e outras atividades consideradas não essenciais[12].
As normas acima referidas tiveram que ser interpretadas e aplicadas à luz do texto constitucional, despontando daí a importância da atividade interpretativa, a relevância do ativismo judicial.
Neste período de emergência (calamidade pública decorrente da pandemia), muitos municípios postularam ao Judiciário a restrição ao acesso em seus respectivos territórios, para que fosse permitida a entrada apenas de veículos de emergência e de locomoção para atendimento médico; transporte e abastecimento de suprimentos; prestação de serviços essenciais, enfim, a limitação do direito de ir e vir com o escopo de proteger a população local.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XV, estabelece o direito de ir e vir:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;”.
À primeira vista, a Lei nº 13.979/2020, com a redação dada pela Medida Provisória 926, de 20 de março de 2020, violaria a cláusula pétrea acima destacada.
Observa-se, todavia, que no caso há confronto entre direitos individuais e coletivos, assegurados pela Constituição Federal.
O artigo 196 da Constituição Federal estabelece:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
O direito de ir e vir, a todos assegurado, poderá ser relativizado nas situações em que houver a necessidade de resguardar a saúde da coletividade, pois esta é direito de todos e dever do Estado.
Imperioso, ainda, destacar que a saúde constitui direito social, nos termos do art. 6º da Constituição Federal, que dispõe:
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Para os casos concretos, portanto, mediante controle de constitucionalidade, o Judiciário deparou-se com a necessidade de aplicar a lei infraconstitucional de forma a não caracterizar afronta à norma maior, levando-se em consideração a excepcionalidade do momento.
Nesse diapasão, os pedidos formulados ao Judiciário expuseram conflitos entre dois direitos constitucionalmente garantidos: livre locomoção e direito coletivo e individual à vida e à saúde.
Aos casos apresentados, em primeiro grau o Judiciário, majoritariamente, aplicou o “princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas”, que preconiza que os direitos e garantias fundamentais não são ilimitados, destacando que não há hierarquia entre normas constitucionais, pois todas decorrem do mesmo poder constituinte originário. Todos os direitos constitucionais são relativos, encontrando limites em outros direitos ou em interesses coletivos, igualmente consagrados na Constituição Federal[13].
Em primeiro grau de jurisdição fora criada uma norma para o caso concreto, ou seja, relativizado o direito de ir e vir frente à excepcionalidade da crise enfrentada.
Referida atuação jurisdicional deve ser encarada com cautela, notadamente se levar em consideração a tripartição dos poderes, pois as medidas hábeis e necessárias à contenção do vírus competem ao Poder Executivo, notadamente ao da localidade, não sendo conferido ao Judiciário enveredar para as questões que envolvem discricionariedade administrativa e técnicas que podem apresentar particularidades inerentes à respectiva região.
Em segundo grau, o Judiciário Bandeirante, ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2054679-18.2020.8.26.0000, fez interessantes considerações, que bem ilustram os limites para atuação do Judiciário, que de certa forma, inibem o ativismo judicial, merecendo destaque os fragmentos que seguem:
“(…)
Com efeito, decisões judiciais específicas acerca de alguns municípios de regiões do Estado afasta da Administração estadual seu legítimo juízo discricionário de conveniência e oportunidade de organização dos serviços públicos tecnicamente adequados.
Está suficientemente configurada a lesão à ordem pública, assim entendida como ordem administrativa geral, equivalente à execução dos serviços públicos e o devido exercício das funções da Administração pelas autoridades constituída (cf. STA-AgRg 112, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 27.02.08; Pet-Ag-Rg-Ag-Rg 1.890, Rel. Min. Marco Aurélio, red. ac. Min. Carlos Velloso, j. 01.08.02; SS – AgRg 846, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29.05.96; e SS-AgRg 284, Rel. Min. Néri da Silveira, j. 11.03.91).
(…)
Essas as razões pelas quais decisão judicial não pode substituir o critério de conveniência e oportunidade da Administração, especialmente em tempos de crise e calamidade, porque o Poder Judiciário não dispõe de elementos técnicos suficientes para a tomada de decisão equilibrada e harmônica.
Ademais, negar ou conceder acesso a rodovia ou a determinado trecho de uma estrada constitui ato administrativo informado pelas características da região como um todo e não apenas alguns municípios em contraposição a outros tantos. São elementos ligados ao mérito do ato administrativo, que não podem ser objeto de análise pelo Poder Judiciário, cuja apreciação se debruça sobre aspectos formais de validade e eficácia. A providência tomada pelos Juízos singulares acaba por invadir o próprio poder de polícia da Administração, excepcional e discricionário, capaz de restringir coativamente a atividade individual, na proteção da segurança coletiva e da boa ordem da coisa pública, este o mérito de eventual ato nesse sentido.
Se não pode invalidar, pelo mérito, ato administrativo, é também vedado ao Poder Judiciário proferir decisão que substitua o mérito do ato da Administração, que deve se pautar em critérios técnicos.
Nesse sentido, as decisões questionadas trazem risco à ordem pública na acepção acima declinada, na medida em que obstaculizam ou dificultam o adequado exercício das funções típicas da Administração pelas autoridades legalmente constituídas, comprometendo a condução coordenada das ações necessárias à mitigação dos danos provocados pela COVID-19”[14].
Embora a intenção dos magistrados de primeiro grau tenha sido a melhor possível, diante do cenário que se apresentou (pandemia global), não poderia ter sido desprezada a coordenação a ser exercida pelo Poder Executivo.
Diante da crise sanitária mundial, fora reconhecido que decisões judiciais isoladas, atendendo apenas parte da população, teria o potencial de promover a desorganização administrativa, em nada contribuindo para o combate à pandemia.
Evidente, portanto, que o ativismo judicial contribui para a evolução do Direito e constitui poderoso instrumento que deve ser empregado com muita responsabilidade, sob pena de restar violado os princípios estruturais do Estado Democrático de Direito.
A fundamentação adequada, que deve existir em todo e qualquer provimento jurisdicional com caráter decisório, confere legitimidade ao referido ativismo, que poderá ser ou não ratificado em sede de duplo grau de jurisdição.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito constitui a ciência do dever ser e tem por função a manutenção da vida em sociedade, conforme estudado nas disciplinas iniciais dos cursos jurídicos.
A sociedade tem passado por profundas transformações, tornando-se cada vez mais complexa, exigindo dos operadores do Direito habilidades e conhecimentos múltiplos.
Os conflitos coletivos, a evolução tecnológica, os problemas decorrentes da globalização, impulsionaram a transformação na forma de aplicar o conjunto de normas e regras, pois o Direito passou a ter uma projeção do seu sentido para o futuro.
A questão não está mais em controlar os comportamentos como foram realizados, mas preocupar-se como eles se realizarão, pois a sociedade tem evoluído e se transformado de forma extremamente célere.
O Poder Legislativo não consegue acompanhar referida evolução, assumindo papel de destaque o ativismo judicial.
Segundo a teoria tridimensional do Direito, desenvolvida pelo saudoso Miguel Reale, o Direito se compõe da conjugação harmônica de fato (aspecto fático), valor (aspecto axiológico) e norma (aspecto normativo)[15].
Podemos atualmente afirmar que aos elementos da referida teoria tridimensional há possibilidade de inserir qualificativos, pois os fatos futuros, comportam valores prováveis e as normas também abrangem os provimentos jurisdicionais que influenciarão futuras decisões.
A jurisprudência, portanto, contribui para a evolução do Direito, sendo certo que os novos entendimentos resultam das interpretações e valorações feitas pelos julgadores, levando-se em consideração a evolução da sociedade.
O ativismo judicial, portanto, quando bem aplicado, contribui para que o Direito consiga cumprir com o seu papel, caminhar “pari passu” com a sociedade, colmatar as “lacunas legis” existentes, sempre calcado nos chamados “lastros normativos”.
O desafio que se apresenta no ativismo judicial é a supervalorização da técnica em detrimento do “politicamente correto”. Decisão “politicamente correta” desprovida de lastro normativo não pode ser mantida, devendo ser submetida a eficaz controle do Poder Jurisdicional.
Antes, o controle do poder jurisdicional era feito a partir do princípio da tipicidade, ou da definição dos instrumentos expressamente contemplados em lei. Hodiernamente, referido controle é mais complexo e sofisticado, despontando daí a importância da fundamentação no provimento jurisdicional.
Por ser o juiz o intérprete autêntico da norma, a sua atividade intelectual e interpretativa resultará na criação de novas normas, que não se restringem ao caso apresentado, notadamente se considerarmos os provimentos jurisdicionais proferidos pelos Tribunais e Órgãos Superiores, que mediante técnicas processuais e constitucionais (súmulas, súmulas vinculantes, recursos repetitivos, incidentes de resolução de demandas repetitivas, assunções de competência, repercussões gerais) uniformizam entendimentos e abreviam discussões nas instâncias inferiores.
O ativismo judicial é inerente à função, poder e atividade jurisdicional, não podendo ser visto como usurpação da função legislativa, mas como algo inerente à interpretação autêntica da norma, ou seja, resultante da valoração de fatos e provas, com a invocação de lastro normativo (positivado ou não) resultando na dicção do Direito ao caso concreto.
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THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. NOVO CPC: Fundamentos e Sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
REALE, Miguel. LIÇÕES PRELIMINARES DE DIREITO. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
[1] CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 35.
[2] A Teoria da Separação dos Poderes (Sistema de Freios e Contrapesos), restou consagrada por Charles-Louis de Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu, na sua obra “O Espírito das leis”, influenciado pelas obras de Aristóteles (Política) e de John Locke (Segundo Tratado do Governo Civil), no período da Revolução Francesa.
[3] ANDRADE, Sabrina Dourado França, O princípio da proporcionalidade e o poder de criatividade judicial. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel (Coord). CONSTITUIÇÃO E PROCESSO. Bahia: Podium, 2007. p. 669.
[4] NOVO CURSO DE PROCESSO CIVIL. São Paulo: RT, 2015. v. 1. p. 103.
[5] LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO INTERPRETADA. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 124.
[6] TAVARES, André Ramos. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 2 ed rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 45.
[7] DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA CONSTITUIÇÃO. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 144.
[8] NOVO CPC: Fundamentos e Sistematização. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 62.
[9] Art. 400. Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se:
(…)
Parágrafo único. Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.
Art. 403. Se o terceiro, sem justo motivo, se recusar a efetuar a exibição, o juiz ordenar-lhe-á que proceda ao respectivo depósito em cartório ou outro lugar designado, no prazo de 5 (cinco) dias, impondo ao requerente que o ressarça pelas despesas que tiver.
Parágrafo único. Se o terceiro descumprir a ordem, o juiz expedirá mandado de apreensão, requisitando, se necessário, força policial, sem prejuízo da responsabilidade por crime de desobediência, pagamento de multa e outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar a efetivação da decisão.
Art. 301. A tutela de urgência de natureza cautelar pode ser efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito.
[10] NOVO CURSO DE PROCESSO CIVIL. São Paulo: RT, 2015. v. 1. p. 133.
[11] DIREITO CONSTITUCIONAL: Liberdade de fumar, privacidade, Estado, Direitos Humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007. p. 404-5.
[12] No Estado de São Paulo merece destaque o Decreto 64.879/20.
[13] Fundamentos desenvolvidos nos autos do processo nº 1000012-48.2020.8.26.0599 (Ação Civil Pública promovida pelo Município de São Pedro contra a Fazenda do Estado de São Paulo).
[14] TJSP, Des. Presidente do TJSP Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j. 23 mar. 2020. Disponível em: http://www.tjsp.jus.br.
[15] REALE, Miguel. LIÇOES PRELIMINARES DE DIREITO. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 64-8.